Michele foi apátrida até esta quarta-feira, um ano e 14 dias depois de nascer, período que os pais passaram a tentar registá-lo num consulado português, sem resposta, e em contactos “desesperantes” com serviços em Portugal, segundo contaram à Lusa.
O menino nasceu em Valença, Espanha, em 10 de agosto do ano passado, e com pai português e mãe italiana, tinha de ser registado num consulado.
Os pais quiseram que fosse português, para depois poder ter também nacionalidade espanhola, o que não aconteceria se fosse registado como italiano, por falta de acordos nesta matéria entre Itália e Espanha.
Logo após o nascimento do bebé, conseguiram marcar uma ida para outubro ao consulado de Barcelona, onde o pai está inscrito, mas os documentos da mãe que lhes pediram para levar não ficaram prontos a tempo: eram certidões que tiveram de ser pedidas em Itália e depois traduzidas, de forma certificada, segundo as regras especificadas pelas autoridades portuguesas.
Foi quando finalmente conseguem reunir todos os documentos que “começa a saga”, nas palavras do pai de Michele, António Martins, com 42 anos e há 17 em Espanha, à Lusa. Porque, ainda em outubro do ano passado, quando puderam pedir nova visita ao consulado em Barcelona, já não se podia fazer essa marcação por email, mas apenas através da plataforma criada pelo Governo português para os agendamentos em todos os consulados.
Apesar das tentativas diárias e constantes, entre outubro e fevereiro/março deste ano, António nunca conseguiu fazer qualquer agendamento.
Também enviou emails e acabou por ser contactado, telefonicamente, por uma pessoa em Lisboa, que lhe disse quais os documentos necessários para o registo da criança. No início de maio, deram-lhe a data de 28 de julho para ir ao consulado de Barcelona, com o alerta de que depois havia ainda “dois a seis meses” até uma resposta.
“Já desesperados, falámos com um advogado português”, explicou António Martins. Para os pais, contou, a perspetiva de ficar ainda tanto tempo com um filho apátrida era assustadora: a criança já tinha adoecido e foi atendida numa urgência, que tiveram, porém, de pagar, e a partir daí não tinha direito a assistência médica pública, como visitas ao pediatra, medicamentos comparticipados ou vacinas, que tiveram sempre de pagar.
O advogado aconselhou os pais a tratarem do processo em Portugal, o que fizeram, com a ajuda da mãe de António Martins, que primeiro tentou fazer o registo do bebé, mas os serviços disseram que neste caso tinha de fazer antes um pedido de nacionalidade para Michele.
Para este processo, não conseguiram agendar atendimento na região de Lisboa, onde vive a mãe de António Martins, que entregou a documentação no Arquivo Central do Porto, em meados de junho.
A partir daqui, não conseguiam ter informações sobre o andamento do processo, nem online, como era suposto, nem por mail, nem por telefone.
Uma notária amiga da família teve mais sorte e disseram-lhe, por email, que os pedidos de nacionalidade ficam todos na mesma fila de espera e têm resposta por ordem de entrada. Ainda assim, podem ser feitos “pedidos com urgência”, o que a notária fez, via email, invocando a situação de apátrida do bebé, mas a resposta foi que não encontravam o processo e, depois, o silêncio.
Numa ida ao Algarve de carro, e com a ajuda de funcionárias dos Registos de Vila Real de Santo António, que se sensibilizaram com o caso, os pais conseguiram localizar o processo e confirmar, no início de agosto, que não estava perdido, mas mais nada.
Foi no regresso a Valência que António Martins denunciou o caso no Twitter, há menos de uma semana, e entre as muitas mensagens “de tanta gente com as mesmas razões de queixa”, com “processos de anos por resolver”, recebeu uma de uma pessoa que trabalha no Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), em Portugal, que lhe explicou que os pedidos de nacionalidade urgentes “só podem ser feitos por carta registada”.
Foi isso que António Martins fez na sexta-feira passada, quando enviou essa carta, que chegou ao arquivo central do Porto na terça-feira, véspera do dia em que a sua mãe recebeu uma chamada a dizer que tinha sido concedida a nacionalidade portuguesa ao neto.
“Um ano e 14 dias depois de nascer, o meu filho deixou de ser apátrida e menos de uma semana depois de ter feito a publicação no Twitter”, disse António Martins, que não sabe se isso se deveu ao processo que já estava em curso, à carta registada com o pedido urgente ou à exposição que teve a publicação no Twitter em meios de comunicação social.
Aquilo que sabe é que tem a sensação de ter vivido um processo “desesperante” em que aquilo que mais o chocou foi “o desprezo absoluto pelos utentes, ninguém atende um telefone, ninguém dá uma informação”.
Michele was stateless until this Wednesday, a year and 14 days after he was born, a period that his parents spent trying to register him in a Portuguese consulate, with no response, and in “desperate” contacts with services in Portugal, they told Lusa.
The boy was born in Valença, Spain, on August 10 last year, and with a Portuguese father and Italian mother, he had to be registered in a consulate.
The parents wanted him to be Portuguese, so that he could also have Spanish nationality, which would not happen if he was registered as Italian, due to the lack of agreements on this matter between Italy and Spain.
Soon after the baby’s birth, they managed to schedule an October visit to the Barcelona consulate, where the father is registered, but the mother’s documents that they were asked to bring were not ready in time: they were certificates that had to be requested in Italy and then translated, in a certified manner, according to the rules specified by the Portuguese authorities.
It was when they finally managed to gather all the documents that “the saga begins”, in the words of Michele’s father, Antonio Martins, 42 years old and 17 years in Spain, to Lusa. Because, only in October last year, when they could request a new visit to the consulate in Barcelona, it was no longer possible to make that appointment by email, but only through the platform created by the Portuguese government for appointments in all consulates.
Despite daily and constant attempts, between October and February/March this year, António never managed to make any appointment.
He also sent emails and was eventually contacted by phone by a person in Lisbon, who told him what documents were needed to register the child. In early May, they gave him a date of July 28 to go to the consulate in Barcelona, with the warning that after that there were still “two to six months” before a response.
“Already desperate, we spoke with a Portuguese lawyer,” explained António Martins. For the parents, he said, the prospect of staying so long with a stateless child was frightening: the child had already fallen ill and was treated in an emergency room, which they had to pay, and from then on he had no right to public health care, such as visits to the pediatrician, reimbursed medicines or vaccines, which they always had to pay.
The lawyer advised the parents to handle the process in Portugal, which they did, with the help of António Martins’ mother, who first tried to register the baby, but the services said that in this case they had to first make a nationality request for Michele.
For this process, they were unable to schedule an appointment in the Lisbon region, where António Martins’ mother lives, who delivered the documentation at the Central Archive in Oporto, in mid-June.
From then on, they were unable to get information about the progress of the process, neither online, as they were supposed to, nor by email, nor by phone.
A notary friend of the family had better luck and was told, by email, that the nationality requests are all kept in the same waiting list and are answered in order of receipt. Even so, “urgent requests” can be made, which the notary did, via email, invoking the statelessness of the baby, but the response was that they couldn’t find the file, and then silence.
On a trip to the Algarve by car, and with the help of employees of the Registries of Vila Real de Santo António, who were touched by the case, the parents managed to locate the file and confirm, in early August, that it was not lost, but nothing more.
It was on his return to Valencia that António Martins denounced the case on Twitter, less than a week ago, and among the many messages “from so many people with the same reasons for complaint”, with “years of unresolved cases”, he received one from a person who works at the Institute of Registries and Notaries (IRN) in Portugal, who explained to him that urgent nationality requests “can only be made by registered letter”.
That’s what António Martins did last Friday when he sent that letter, which arrived at the central archive in Porto on Tuesday, the day before his mother received a call saying that her grandson had been granted Portuguese nationality.
“One year and 14 days after he was born, my son is no longer stateless and less than a week after he made the publication on Twitter,” said António Martins, who doesn’t know if this was due to the process that was already underway, the registered letter with the urgent request or the exposure that the Twitter publication had in the media.
What he does know is that he has the feeling of having lived a “desperate” process in which what shocked him the most was “the absolute contempt for the users, no one answers the phone, no one gives any information”.