O seu jornal e site passa a ter mensalmente uma nova rubrica que hoje estreamos. Vamos oferecer-lhe todos os meses um bocadinho do mundo bem português que inspirou, há 40 anos, a canção de Mário Gil “pelos caminhos de Portugal, eu vi tanta coisa linda, vi um mundo sem igual”.
Começo por levar o amigo leitor na bagagem até ao meu querido Ribatejo, a Vila Franca de Xira, cidade ribeirinha na margem direita do Tejo, elevada a cidade há 38 anos. Em 2020, recebeu o galardão das “7 Maravilhas da Cultura Popular “, onde viu reconhecida a sua festa mais querida, o Colete Encarnado, que tem lugar no primeiro fim-de-semana de Julho.
Vila Franca de Xira, terra de lezíria e campinos, este ano organizou a sua festa nos dias 1, 2 e 3, completando 90 anos. A primeira edição, realizada em 1932, por iniciativa de um grupo de vila-franquenses dos quais fazia parte um dos grandes agricultores da terra, José Van-Zeller Pereira Palha, tinha como fim homenagear os campinos e reunir fundos para os seus bombeiros voluntários. Foi nesse ano que um grupo de amigos liderado por Joaquim Franco, fundou o Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca Xira, que é o quinto mais antigo de Portugal.
O primeiro Colete Encarnado foi um sucesso. Desde então, ficou ligado aos campinos, cavalos, touros, toureiros, lezíria, esperas, largadas, corridas, forcados, pegas, tudo relacionado com a arte taurina, que por estes tempos anda a ser muito contestada (não são só pelos vegetarianos como, também, pelos que gostam de um bom bife no prato). Nos noventa anos da sua existência não se realizou por 5 vezes, 1933, 1936, 1942, devido à Segunda Grande Guerra, e já no século XXI, em 2020 e 2021, forçado pela Covid-19.
Hoje, o Colete Encarnado que continua a homenagear o campino altivo e garboso montado no seu alazão, tem muito para ver, admirar e até viver, desde o desfile dos campinos com o gado vindo da lezíria, às esperas, largadas, touradas, fandango, música, danças tradicionais com os ranchos folclóricos, as danças sevilhanas (que já fazem parte integrante do cartaz), conjuntos, bandas filarmónicas, fado, pelas ruas ou em palcos, a noite da sardinha assada oferecida pela Câmara Municipal, o desfile das Tertúlias, a solenidade da entrega do Pampilho de Honra, conjugando-se tudo no saber receber e mostrar o que há de mais puro nas tradições de gentes que gostam da Festa Brava, de montar um puro-sangue e de lidar com os toiros bravos no campo.
Gente que aprendeu na escola da vida o que é viver com as agruras e dificuldades das cheias que levavam e arrasavam tudo e todos, e a constatar um consolo em tanta mágoa: ano de cheia, ano de fartura, de terras mais ricas depois das águas se irem embora, como se dizia. São os descendentes desse povo que continuam a amar a sua terra e a preservar as suas tradições.
… Tradições taurinas com três grandes nomes da tauromaquia, José Júlio, filho de bandarilheiro e neto de forcado, Mario Coelho, com pai campino, e José Falcão, que desde miúdo começou a “brincar” aos toureiros. Outro nome grande nascido em terra onde os avieiros fizeram paragem, foi um dos expoentes máximos do neo-realismo português, Alves Redol, que tão bem soube retractar a vida de um povo nos Gaibéus, Avieiros, Fanga ou mesmo na Barca dos Sete Lemes, entre muitas das obras que escreveu.
Terra banhada pelo Tejo que ainda há pouco mais de 50 anos (o assoreamento é o responsável pelo seu fim) tinha golfinhos fazendo visitas até à Ponte Marechal Carmona, cacilheiros subindo rio acima em passeios domingueiros e as fragatas utilizadas para transporte e carga. As bateiras dos avieiros (pescadores da área de Vieira de Leiria) que no inverno começavam por vir pescar nas águas do Tejo e por lá foram ficando, eram as suas casas onde criavam os filhos. Havia também quem construísse casas de madeira à beira d’água, assentes em estacas, que com os anos se tornaram típicas da paisagem ribatejana. Nesse tempo o rio de água pura e salobra era rico e sustentava muita gente com as qualidades de peixe, camarão, ostras, lambujinha, caranguejo.
Muitas coisas se perderam. As velhas fragatas e bateiras deram lugar na sua maioria a barcos de fibra de vidro, embora algumas se vejam por lá, mas poucas. No rio que continua a ter água salobra (mistura de água doce com salgada), o peixe não abunda como outrora devido à poluição. Os golfinhos já não visitam o Tejo em águas ribatejanas. Avieiros é que ainda os há por lá, nas suas palafitas ilustrando a paisagem para turista ver.
O Museu guarda vestígios arqueológicos desde a Idade do Ferro mostrando que a região foi sempre ocupada. As descobertas feitas no sopé do monte do Senhor da Boa Morte, remontam ao século II e I aC. As sepulturas do período do Alto Império, estruturas de habitações e estradas romanas denunciam uma zona muito desenvolvida devido à proximidade com o rio. D. Sancho I , deu foral em 1195 a Povos, (povoação próxima) reconhecendo-a como uma área económica de relevo que, contudo, ao longo dos tempos foi perdendo importância a favor de Vila Franca.
A cidade não esqueceu os seus filhos que levaram o nome dela além-fronteiras, e erigiu, em diferentes espaços, os seus bustos, destacando-se os monumento ao campino, próximo da Câmara Municipal, e aos forcados, junto à praça de touros Palha Blanco.
Vila Franca de Xira com estatuto ao longo dos séculos, fica a pouco mais de 40 minutos de Lisboa a cujo distrito pertence e é bem servida por estrada, auto- estrada, comboios, autocarros.
A vertente religiosa do coração da sua gente está bem presente na Lezíria Grande do Tejo, onde o olhar se perde no verde infinito do campo até encontrar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, mandada construir no século XVIII. Tem o seu dia de guarda no feriado de 10 de Junho, com a imagem a sair em procissão abençoando o povo, animais, terras e searas. Conhecida pela Senhora de Alcamé, por assim se chamar o local onde se encontra, é a padroeira dos campinos e avieiros.
Também por aqui temos uma lenda, “conta-se que um dia um campino foi atacado por uma serpente; na sua aflição pediu ajuda a Nossa Senhora da Conceição que apareceu e fechou a boca do réptil com uma maçã” e assim foi salvo de uma “real” mordedura que lhe tiraria a vida.
Espero que tenha gostado desta primeira viagem pelos Caminhos de Portugal, onde algumas coisas se perderam, mas o gosto das suas gentes pela festa brava, lezíria, pelo sol e toiros e o bem receber não desapareceu com o tempo, tal como a gastronomia bem ribatejana, a açorda das ovas de sável, com sável frito, as enguias fritas ou ensopado, a sopa de bacalhau, o torricado com bacalhau assado, o bom melão produto da lezíria para sobremesa, ou ainda os doces regionais.
Agucei-lhe o apetite? Oxalá que sim para que numa próxima visita ao nosso País, possa dar uma “voltinha” por esta terra tão típica, onde proliferam os azulejos antigos espalhados pelas ruas nas casas mais antigas, estação da CP, no Mercado Municipal, falando de toda uma vida dedicada ao campo, aos toiros e ao rio. Tudo isso espera por si!
Por: Idalina Henriques